Família de venezuelanos no caminho entre a cidade fronteiriça de Pacaraima e Boa Vista
Chegada de uma média de 500 venezuelanos por dia sobrecarrega estado, dependente de recursos federais. Em meio a caos nos serviços públicos e onda de xenofobia, governos local e federal travam guerra judicial.
Com o processo eleitoral brasileiro em curso, as ações políticas para amenizar o drama migratório de venezuelanos que entram ao Brasil por Roraima são lentas. Enquanto União e estado travam uma guerra judicial no Supremo Tribunal Federal (STF) desde abril, cenas de violência e xenofobia se tornam mais frequentes e preocupam entidades de direitos humanos e agentes públicos.
Há, atualmente, cerca de 50 mil venezuelanos em Roraima, o equivalente a quase 10% da população do estado, estimada hoje pelo IBGE em 522 mil habitantes. A crise humanitária na região afeta a rotina dos brasileiros e colapsou por completo a rede de serviços públicos do estado de Roraima.
No último dia 18 de agosto, brasileiros expulsaram mais de mil venezuelanos da cidade de Pacaraima, destruíram acampamentos e queimaram roupas e alimentos dos imigrantes. Os incidentes evidenciaram o caos provocado pelo intenso fluxo migratório num estado com parcos recursos financeiros e que o ocupa a última posição na participação do Produto Interno Bruto (PIB) nacional.
O impacto da presença dos venezuelanos nos serviços públicos de Roraima é notório. O estado sobrevive, financeiramente, de repasses constitucionais da União, e as autoridades locais argumentam que desde 2016 alertam a União para a crise migratória.
De acordo com dados do Ministério das Relações Exteriores do Brasil, cerca de 110 mil venezuelanos ingressaram no país de 2017 até maio deste ano, sendo que cerca de 50 mil solicitaram regularização migratória. A maior parte deles está em Roraima.
Para se ter uma ideia do impacto da fluxo migratório, em 2016, havia 35 estudantes venezuelanos na rede pública estadual, no ensino médio. Em 2017, já eram 339. Neste ano, até março, 1.484 alunos venezuelanos estavam matriculados.
O governo estadual criou em 2017 uma chamada Sala de Emergência para coordenar as ações de saúde, temendo, inclusive, o retorno de epidemias como sarampo e poliomielite, erradicadas há décadas. Em 2016, 7.457 venezuelanos foram atendidos na rede de saúde do estado. Em 2017, foram 50.286 atendimentos. Até março deste ano os atendimentos já chegavam a 45.102.
No ano passado, Roraima recebeu 122 milhões de reais de repasses constitucionais da União para a saúde, mas gastou 510 milhões de reais de recursos próprios, argumentam as autoridades locais.
O que mais preocupa o governo do estado hoje são os índices de segurança pública, com o aumento crescente da violência. Um dado exemplifica o drama: em 2016, havia 19 venezuelanos no sistema prisional do estado. Em 2017, 43 imigrantes venezuelanos foram encarcerados. Neste ano, já há 61 venezuelanos na cadeia. O custo médio mensal com um preso na rede estadual é de 2.014,58 reais.
"Omissão sistematizada da União"
O procurador Marcelo de Sá Mendes, que representa Roraima em Brasília e nas audiências no STF, afirma que há um caldeirão pronto para explodir e cobra respostas efetivas e rápidas da União. Segundo ele, Roraima só ajuizou uma Ação Civil Ordinária (ACO) no Supremo solicitando o fechamento provisório da fronteira com a Venezuela porque tentou pedir ajuda da União ao longo de dois anos, sem retorno.
"O fechamento da fronteira foi nosso terceiro e último pedido. Isso é sim um pedido de ajuda, mas não é um pedido de favor da União. Roraima não pode atuar sozinha. É um problema do Brasil", alerta Mendes. Para ele, há "omissão sistematizada da União" e a judicialização foi a última saída.
Há dramas locais que só os cidadãos de Roraima podem descrever, diz o procurador. Há meses, por exemplo, quatro corpos de venezuelanos aguardam um destino para serem enterrados. As famílias exigem o enterro na Venezuela, e o governo local não tem recursos para bancar o traslado dos corpos. Outro drama diário é abrir a porta de casa e esbarrar com pedintes venezuelanos sem ter o que comer.
Revoltados com o caos na saúde, brasileiros agem com violência, e aumentam também os registros de agressões a equipes médicas em instalações hospitalares.
Sobre o risco de epidemia de sarampo, o procurador afirma que a União foi alertado com antecedência. "E agora nossa vigilância sanitária trabalha com a possibilidade de retorno da difteria", pontua.
O governo federal não reconhece os dados da Sala de Emergência de Roraima e criou, em fevereiro, um Comitê Federal de Assistência Emergencial, coordenado pela Casa Civil e integrado por 12 ministérios. Curiosamente, nenhum representante do estado de Roraima faz parte do grupo.
Nas petições do governo estadual apresentadas ao Supremo, autoridades de Roraima apontam inúmeros gastos adicionais com serviços públicos. Basicamente, o que Roraima reivindica é um repasse emergencial de recursos financeiros para cobrir investimentos feitos ao longo dos últimos dois anos com os imigrantes.
Fechamento da fronteira
O governo federal anunciou nesta terça-feira (28/08) o envio de militares para a fronteira para a garantia "da lei e da ordem". Além disso, a União alega que está realizando o processo de interiorização dos venezuelanos, chamada de Operação Acolhida. De abril até esta semana, segundo a Casa Civil da União, foram transferidos 1.007 venezuelanos para outros estados brasileiros.
O governo estadual, no entanto, considera o número inexpressivo, já que diariamente entram no estado, sem controle, em média 500 venezuelanos. A migração é tema central das campanhas eleitorais, e os roraimenses apoiam o fechamento da fronteira.
A interiorização é um programa que conta com o auxílio de agências da ONU e organismos internacionais. A Casa Civil não respondeu ao pedido de entrevista da DW Brasil sobre as ações do governo federal para conter a crise migratória.
A advogada-geral da União, Grace Mendonça, refuta os argumentos das autoridades estaduais. "Há pretensões deduzidas pelo estado que não possuem amparo no ordenamento jurídico pátrio, tampouco nos tratados internacionais firmados pelo Brasil, a exemplo do fechamento de fronteira, daí a impossibilidade [de acordo]", justifica.
A União, diz, "atendeu a todos os pleitos do estado, com exceção do pedido de fechamento das fronteiras". No entanto, um acordo no STF ainda não foi firmado. Duas audiências de conciliação realizadas em maio e em junho, por determinação da ministra do STF Rosa Weber, relatora do caso, terminaram sem avanços.
Guerra de versões
As diferentes versões entre estado e União levaram entidades de direitos humanos a pleitearem, no Supremo, uma inspeção judicial para verificar, in loco, a realidade de Roraima e os argumentos dos dois lados. A ministra Rosa Weber ainda não tomou uma decisão sobre a inspeção.
"Conclamo as partes, novamente, à composição pela forma de conciliação (...) para evitar que controvérsia no campo da divisão de competências na esfera administrativa desborde para ampliação do sofrimento de seres humanos", argumentou a ministra em seu último despacho, no dia 8 de agosto, quando anulou um decreto do governo de Roraima que restringia o acesso de venezuelanos aos serviços públicos essenciais.
De acordo com a Advocacia-Geral da União (AGU), já foram tomadas medidas de assistência emergencial e "desde o início da crise migratória, em 2016, a União já repassou ao estado mais de 300 milhões de reais a título de ressarcimento". Roraima não reconhece as informações. "Roraima não recebeu um real a mais da União por conta da crise migratória", refuta o procurador.
O governo federal, acrescenta a AGU, auxilia o estado com a intensificação de patrulhas nas fronteiras; montagem de abrigos e alojamentos emergenciais; repasses adicionais de recursos para a rede de saúde; envio de médicos, ambulâncias e alimentos.
Para o governo do estado, as medidas são paliativas e os dados, manipulados. Para Mendes, é inaceitável, por exemplo, que o governo federal exija a vacinação de venezuelanos para a interiorização a outros estados, mas não faça a mesma exigência aos que permanecem em Roraima.
Segundo Mendonça, todos os investimentos feitos em 2018, até o momento, são da ordem de "200 milhões de reais, motivo pelo qual a AGU refuta suposta omissão por parte do governo federal".
Enquanto a guerra de versões persiste, entidades de direitos humanos lamentam o aumento do clima de xenofobia e ausência de campanhas de educação, que deveriam ser feitas conjuntamente pela União e pelo governo estadual.
"Ambos os lados precisam urgentemente avançar na adoção de novas medidas: o governo federal ampliando os repasses financeiros a Roraima e envio de recursos públicos, e o governo estadual suspendendo medidas normativas de fechamento da fronteira e restrição de acesso de serviços públicos a imigrantes", considera o advogado Beto Vasconcelos, ex-secretário nacional de Justiça e representante das entidades na ação que tramita no Supremo.
O governo federal anunciou nesta terça-feira (28/08) o envio de militares para a fronteira para a garantia "da lei e da ordem". Além disso, a União alega que está realizando o processo de interiorização dos venezuelanos, chamada de Operação Acolhida. De abril até esta semana, segundo a Casa Civil da União, foram transferidos 1.007 venezuelanos para outros estados brasileiros.
O governo estadual, no entanto, considera o número inexpressivo, já que diariamente entram no estado, sem controle, em média 500 venezuelanos. A migração é tema central das campanhas eleitorais, e os roraimenses apoiam o fechamento da fronteira.
A interiorização é um programa que conta com o auxílio de agências da ONU e organismos internacionais. A Casa Civil não respondeu ao pedido de entrevista da DW Brasil sobre as ações do governo federal para conter a crise migratória.
A advogada-geral da União, Grace Mendonça, refuta os argumentos das autoridades estaduais. "Há pretensões deduzidas pelo estado que não possuem amparo no ordenamento jurídico pátrio, tampouco nos tratados internacionais firmados pelo Brasil, a exemplo do fechamento de fronteira, daí a impossibilidade [de acordo]", justifica.
A União, diz, "atendeu a todos os pleitos do estado, com exceção do pedido de fechamento das fronteiras". No entanto, um acordo no STF ainda não foi firmado. Duas audiências de conciliação realizadas em maio e em junho, por determinação da ministra do STF Rosa Weber, relatora do caso, terminaram sem avanços.
Guerra de versões
As diferentes versões entre estado e União levaram entidades de direitos humanos a pleitearem, no Supremo, uma inspeção judicial para verificar, in loco, a realidade de Roraima e os argumentos dos dois lados. A ministra Rosa Weber ainda não tomou uma decisão sobre a inspeção.
"Conclamo as partes, novamente, à composição pela forma de conciliação (...) para evitar que controvérsia no campo da divisão de competências na esfera administrativa desborde para ampliação do sofrimento de seres humanos", argumentou a ministra em seu último despacho, no dia 8 de agosto, quando anulou um decreto do governo de Roraima que restringia o acesso de venezuelanos aos serviços públicos essenciais.
De acordo com a Advocacia-Geral da União (AGU), já foram tomadas medidas de assistência emergencial e "desde o início da crise migratória, em 2016, a União já repassou ao estado mais de 300 milhões de reais a título de ressarcimento". Roraima não reconhece as informações. "Roraima não recebeu um real a mais da União por conta da crise migratória", refuta o procurador.
O governo federal, acrescenta a AGU, auxilia o estado com a intensificação de patrulhas nas fronteiras; montagem de abrigos e alojamentos emergenciais; repasses adicionais de recursos para a rede de saúde; envio de médicos, ambulâncias e alimentos.
Para o governo do estado, as medidas são paliativas e os dados, manipulados. Para Mendes, é inaceitável, por exemplo, que o governo federal exija a vacinação de venezuelanos para a interiorização a outros estados, mas não faça a mesma exigência aos que permanecem em Roraima.
Segundo Mendonça, todos os investimentos feitos em 2018, até o momento, são da ordem de "200 milhões de reais, motivo pelo qual a AGU refuta suposta omissão por parte do governo federal".
Enquanto a guerra de versões persiste, entidades de direitos humanos lamentam o aumento do clima de xenofobia e ausência de campanhas de educação, que deveriam ser feitas conjuntamente pela União e pelo governo estadual.
"Ambos os lados precisam urgentemente avançar na adoção de novas medidas: o governo federal ampliando os repasses financeiros a Roraima e envio de recursos públicos, e o governo estadual suspendendo medidas normativas de fechamento da fronteira e restrição de acesso de serviços públicos a imigrantes", considera o advogado Beto Vasconcelos, ex-secretário nacional de Justiça e representante das entidades na ação que tramita no Supremo.
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