CATOLICISMO E MEIO AMBIENTE
Introdução
Esta palestra
representa um entre cinco, sobre Religiões
e Meio Ambiente. Fui especialmente convidado para falar de Catolicismo e
Meio Ambiente. É um tema muito vasto e também muito importante. Quero
começar minha tarefa, esclarecendo, um pouco, as palavras “Catolicismo e Meio
Ambiente”.
Em primeiro lugar, quanto ao Catolicismo
creio que não seria necessário dizer muita coisa, pois suponho que estou
falando a um público razoavelmente informado a seu respeito. Mesmo assim, chamo
sua atenção para alguns aspectos importantes.
A Religião Católica é uma religião
cristã, visto que é constituída de pessoas que crêem em Deus por Jesus Cristo,
Filho de Deus. A fé em Jesus Cristo se baseia, por assim dizer, sobre um tripé:
a Bíblia, a comunidade de fé e o magistério da Igreja.
Em primeiro lugar o Catolicismo
reconhece a Bíblia como seu primeiro fundamento, tanto o Antigo como,
sobretudo, o Novo Testamento. A Bíblia também é caracterizada como Sagrada
Escritura, e o Catolicismo reconhece-a como um livro diferente, um livro que
contém a revelação do próprio Deus, de suas obras e intenções a respeito do ser
humano. É um livro também chamado “Palavra de Deus”, já que ele contém a sua
grande e importante palavra.
Na verdade, é uma palavra original
porque não trata apenas da palavra, como símbolo de um saber intelectual, mas
trata da manifestação, por assim dizer, do esforço de Deus por estabelecer
relações de amor e intimidade com os homens. Não é, pois, uma ciência, no sentido
moderno, mas nos manifesta a intenção de pessoas que vêm ao encontro dos
homens. Por isso, os dois Testamentos são ainda chamados de Antiga e Nova
Aliança, já que aliança diz respeito a uma relação entre pessoas.
O apóstolo e evangelista João, no
prólogo de seu Evangelho, chamou Jesus Cristo de “Verbo”, quer dizer,
“Palavra”. A palavra de Deus então indica aqui, de modo eminente, o próprio
Jesus Cristo, o Deus palavra. Portanto, a “Palavra” designa a pessoa de Jesus
Cristo que veio para mostrar-nos o Pai. Como toda palavra manifesta um sentido,
um conceito e é a imagem da coisa em nossa mente, também Jesus, o Verbo, é a
imagem perfeita do Pai, razão por que, quando um Apóstolo pediu a Jesus:
“Mostra-nos o Pai e isto nos basta”! Jesus lhe disse: “Quem me viu, viu o Pai.
Como podes dizer : “Mostra-nos o Pai?!” Não crês que eu estou no Pai e que o
Pai está em mim?” (Jo 14,8-10).
Como pessoa, a palavra representa uma
linguagem original, cujo sentido é captado por outro método que aquele das
ciências. A hermenêutica, neste caso, tem uma importância relativa. Nós
necessitamos de uma outra luz para descobrirmos seu significado pleno. Esta luz
chama-se de luz da fé que ilumina a mente. A fé, entretanto, não só é luz, mas
também “calor”, pois “aquece” o coração, o que é próprio do amor, da intimidade
de pessoas. Já que se trata de intimidade de pessoas, a Palavra de Deus
torna-se um acontecimento, uma vivência.
Existem incontáveis exemplos, antigos e
atuais, desse acontecer na pessoa que tem fé. São Justino, filósofo pagão,
apenas 150 anos depois de Cristo, converteu-se ao cristianismo, ao ler a
Bíblia, graças ao conselho de um velhinho misterioso, que lhe falou dos
profetas que “haviam anunciado somente a verdade”. Justino tomou a Bíblia e nos
conta:
“A minha alma, de repente ficou
iluminada por um fogo como se fora a luz do meio dia. Senti-me enamorado dos
profetas e das pessoas amigas de Cristo. Pensei e repensei em todas aquelas
palavras e entendi: entendi que esta é a única verdadeira e útil filosofia. É
assim que sou filósofo. Gostaria, aliás, que todos experimentassem o que eu
sinto e que não se afastassem da doutrina do Salvador”[1].
Um outro exemplo, embora mais caseiro, é
o do Sr. João Luiz Pozzobon. A uma certa altura de suas longas caminhadas por
muitas estradas, ao visitar famílias e escolas, rezar o terço e dar catequese,
não se conteve e exclamou, na minha presença: “Se me encontrarem morto na beira
da estrada, saibam que morri de alegria!”. A sua alegria provinha da presença
divina em seu coração.
Exemplos como estes ilustram o segundo
“pé” sobre o qual se apóia a Igreja Católica, isto é, a vida de fé da
comunidade. Quando, através dos tempos, toda a comunidade vive crendo em alguma
realidade relacionada com a Bíblia, essa realidade passa a ter foros de verdadeira.
Seu fundamento é a fé constante da comunidade. Por exemplo, a realidade da
Imaculada Conceição não está expressamente revelada na Sagrada Escritura, mas
foi objeto permanente da fé dos cristãos.
O terceiro pé sobre o qual se fundamenta
o Catolicismo reside no chamado “Magistério da Igreja”, o qual se funda na
incumbência dada pelo próprio Cristo a Pedro e com ele aos Apóstolos, o de
serem os garantes da unidade da vida dos discípulos e também as testemunhas na
confirmação da fé. Encontramos esta incumbência em todos os quatro Evangelhos.
Naquele de Mateus, basta recordar a confissão de Pedro: “Tu és o Cristo, o
Filho de Deus vivo”. Jesus respondeu-lhe: “Bem-aventurado és tu, Simão, filho
de Jonas, porque não foi carne ou sangue que te revelaram isto, e sim o meu Pai
que está nos céus. Também eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra
edificarei minha Igreja. Eu te darei as chaves do Reino dos Céus e o que
ligares na terra será ligado nos céus” (Mt 16,16-19; cf 18,18; 28,18).
Na última ceia, Jesus incumbe Pedro de
confirmar os demais: “Eu orei por ti (Pedro) a fim de que tua fé não desfaleça.
Quando, porém, te converteres, confirma teus irmãos” (Lc 22,32). Finalmente,
por três vezes, Jesus pergunta a Pedro se o ama e por três vezes lhe diz: “Apascenta
os meus cordeiros e as minhas ovelhas” (Jo 21,15s). Apascentar é, pois, uma
imagem para dizer convocar, velar, defender assim como faz o bom pastor.
Um outro conceito que está em nosso
título é Meio Ambiente. Aqui também não é preciso dizer muita coisa
porque dele se fala em toda parte, nas escolas e em todos os meios de
comunicação. A própria palavra indica o sentido. Trata-se do lugar e dos
elementos que compõem o hábitat dos seres vivos e, sobretudo, dos seres
humanos. O dicionário Aurélio define-o como “lugar onde se vive, com suas
características e condicionamentos geofísicos”. Compõe-se de muitos fatores: de
terra, água, ar, luz, flora, fauna, de resíduos da era tecnológica e de suas
benéficas, ou maléficas influências. Portanto, tudo o que faz parte do “lugar
onde se vive” compõe o meio ambiente.
Mas o conceito de Meio Ambiente engloba
ainda e, sobretudo, o equilíbrio entre esses fatores, fazendo com que o lugar
se torne adequado para a vida. A partir, pois, do Meio Ambiente, iniciemos a
nossa consideração.
1. Deus criou o Meio Ambiente
Todo e qualquer tema
que o Catolicismo como tal tem em vista,
trata-o com uma ciência própria, a teologia. Ela trata de todo o
conhecimento que Deus nos revelou. Em se tratando de um conhecimento revelado, significa
que, num primeiro momento, representa um saber que vem de Deus a respeito do
universo e a respeito de nós também. Só num segundo momento, se torna um saber
nosso, uma ciência, razão por que a nossa ciência teológica se baseia em fatos
e palavras reveladas. É um conhecimento que se encontra na Bíblia, na fé da
comunidade cristã e no magistério da Igreja, como já mencionamos.
O que, pois, nos dizem essas três fontes
acerca do Meio Ambiente? A primeira delas é a Sagrada Escritura que, desde as
suas primeiras páginas, nos fala, nada menos, que do meio ambiente, já que os
seus dois primeiros capítulos tratam da criação do meio ambiente para o homem.
Justamente, toda a Bíblia começa assim: “No princípio, Deus criou os céus e a
terra” (Gen 1,1). Em seguida, ela especifica: Deus criou a luz, separou as
águas da terra para fazê-la habitável, criou os vegetais, os astros, os peixes
e animais que habitam nas águas e todo tipo de animais terrestres. Diz ela
textualmente: “Que a terra produza seres vivos segundo sua espécie: animais
domésticos, répteis e feras segundo sua espécie, os animais domésticos segundo
sua espécie e todos os répteis do solo segundo sua espécie, e Deus viu que isso
era bom” (Gen 1,24-25). Notemos bem que tendo terminado de relatar a criação
desse ambiente, a Bíblia afirma: “E Deus viu que isso era bom”.
Preparado o ambiente, para que fosse
habitado, Deus criou o homem e a mulher “à sua imagem e semelhança” (Gen 1,26).
E, como dom precioso, entregou-lhes tudo: “Eu vos dou todas as ervas que dão
semente, que estão sobre a superfície da terra, e todas as árvores que dão
frutos que dêem semente: isso será vosso alimento. A todas as feras, a todas as
aves do céu, a tudo o que rasteja sobre a terra e que é animado de vida, eu dou
como alimento toda a verdura das plantas, e assim se fez” (Gen 1,29-30). E,
depois desse dom e do término da obra da criação, a Bíblia repete: “Deus viu
tudo o que tinha feito: era muito bom” (Gen 1,31).
Portanto, a Sagrada Escritura tem uma
visão positiva a respeito do meio ambiente, malgrado opiniões contrárias. Em
verdade a testemunha que Deus conduziu
toda a criação ao homem “para ver como ele
chamaria (as criaturas): cada qual devia levar o nome que o homem lhe
desse. O homem deu nomes a todos os
animais, às aves do céu e a todas as feras selvagens” (Gen 2,19-20). Dar nome é
um gesto de carinho e de paternidade e não de dominação, no sentido moderno,
como alguns acharam de interpretar. A dominação veio após.
Assim também, no
episódio do dilúvio, Deus manifesta ainda seu apreço pela natureza, pelo meio
ambiente. “Deus falou assim a Noé e a
seus filhos: Eis que estabeleço minha aliança convosco e com os vossos
descendentes depois de vós, e com todos os seres animados que estão convosco:
aves, animais, todas as feras, tudo o que saiu da arca convosco, todos os
animais da terra” (Gen 9,8-10). Aliança é um acontecimento entre pessoas,
grandemente positivo.
2.
Donde
veio, pois, a dominação e o desperdício da natureza?
Na época em que a
Escritura Sagrada foi escrita, a humanidade se fazia a mesma pergunta
angustiante que hoje nos fazemos: Se Deus disse que “tudo era muito bom”, se
Deus é bom, donde veio, então, a maldade humana, que reside em nós e tem – e,
hoje, todos o sabemos –, tanta influência e repercussão destruidora de nós
mesmos e do meio ambiente em que vivemos?
Existem, em nós,
tendências para o mal, para a destruição e, facilmente, satisfazemos tais
tendências em detrimento da harmonia de nosso ser, da sociedade e da natureza,
iludindo-nos de encontrar assim a realização pessoal, a felicidade.
A resposta da Bíblia
está descrita no capítulo três do Gênesis. Com uma alegoria, esse capítulo nos
descreve um acontecimento de grande e universal importância. Nele encontramos
uma certa explicação para o problema do mal no mundo. Nele se descreve a origem
da maldade humana. Mas onde reside tal origem?
Hoje, por exemplo, os
comentaristas, diante da crise financeira, estão de acordo em afirmar que a sua
origem é a “ganância”. Mas, de onde veio a ganância? Outros generalizam isso
mais ainda, ao falarem do egoísmo que mora em nós. Mas de onde veio o egoísmo?
Precisamos olhar para
a referida alegoria, para ver a origem do mal. O maligno, no símbolo da
serpente, explorou exatamente a nossa natureza de seres dotados de espírito que
conhecem e amam e que aspiram insaciavelmente o infinito, o absoluto, a posse
de Deus. Por criação somos um vazio de Deus.
Até Jean-Paul Sartre,
filósofo contemporâneo, reconheceu esta nossa realidade insaciável, este vazio
de Deus. Entretanto, como um ateu contumaz, declarou que esse anseio não tem
finalização, não tem sentido, já que Deus não existe. Em razão disso, afirmou
que a vida humana é “uma paixão inútil”.
Foi exatamente isso
que o tentador explorou: a fim de preencher o vazio de Deus, propôs ao homem e
à mulher separarem-se de Deus, insinuando-lhes que, por estarem unidos a ele,
estariam sempre de olhos fechados e sem rumo, ao passo que, separados dele, os
“vossos olhos se abrirão, e sereis como deuses, versados no bem e no mal” (Gen
3,5).
Desde então, como por
um processo genético, o afastamento de Deus, em lugar de abrir os olhos,
produziu a verdadeira cegueira. Desde então, vivemos da ilusão de que nossos
“olhos” sabem encher o vazio de Deus. O que enxergam, porém, são sucedâneos
para esse vazio: os prazeres, as riquezas, a cobiça, o orgulho, a dominação.
O grande filósofo
pagão, Aristóteles, em sua Ética a Nicômaco, escreve que o néscio se ilude,
“colocando a felicidade nos prazeres, nas riquezas e nas honras. O sábio,
porém, coloca a felicidade no Sumo Bem”. Essa tentativa de preencher o vazio
com sucedâneos é, precisamente, o que desorganiza nossa natureza e também o
mundo ao nosso redor.
O primeiro
desequilíbrio está em nosso próprio ser. A seguir produzimos o desequilíbrio ao
nosso meio ambiente. Não é que os prazeres, as riquezas, a ambição etc. sejam
maus. Eles são maus, quando se sobrepõem às outras dimensões de nosso ser. Se,
com efeito, julgamos que a crise financeira atual brota da “ganância”, isto
significa que se pretende ser como Deus,
acima do bem e do mal, e encaminhar tudo em proveito do “ego”, ao custo
da dilapidação da natureza.
Eis a causa do
desperdício do meio ambiente: já que não enchemos o vazio de Deus com o objeto
próprio, que é Deus, tentamos insaciavelmente preenchê-lo com sucedâneos, com
ersatz. E nessa corrida não há limites, somos insaciáveis porque o desejo é de
infinito.
3. O resgate do meio ambiente
A Bíblia, em sua
divisão clássica, compõe-se de duas partes: o Antigo e o Novo Testamento. Mas,
para o efeito do que estamos tratando, poderíamos dividi-la, como sua primeira
parte, os dois primeiros capítulos, os da criação e os da “queda” com suas
conseqüências, e como segunda parte todos os demais capítulos.
O meio ambiente já
não será mais tranqüilo e pacífico. Deus disse a Adão: “Porque comeste da
árvore que eu te proibira de comer, maldito é o solo por causa de ti. Com
sofrimento te nutrirás dele todos os dias de tua vida. Ele produzirá para ti
espinhos e cardos e comerás a erva dos campos. Com o suor de teu rosto comerás
teu pão até que retornes ao solo, pois dele foste tirado. Pois tu és pó e ao pó
tornarás” (Gen 3, 17-19).
Isso quer dizer que, rebelado o homem, toda a
natureza e o ambiente se tornaram adversos, não por sua causa, mas por causa do
homem. Antes, a natureza era o jardim do Éden, depois, tornou-se o “vale de
lágrimas”.
A partir daí,
entretanto, a natureza toda e os homens, em primeiro lugar, não foram
abandonados. Deus começa, logo após o terceiro capítulo da Bíblia, e ao correr
de todo o resto da Bíblia, a falar em aliança com o homem e com a natureza,
sobretudo a partir do capitulo 12 do livro do Gênesis, quando escolhe Abraão e
lhe diz: “Faço aliança contigo e com tua posteridade, uma aliança eterna, de
geração em geração, para que eu seja o teu Deus e o Deus de tua posteridade”
(Gen 17,7).
Toda a seguinte parte
da Bíblia passa a representar o esforço, por assim dizer, que Deus faz para
resgatar o homem e, com ele, a natureza, o meio ambiente. Quem melhor expressou
isso, com palavras certas, foi São Paulo. Escreve ele: “Toda a criação espera
ansiosamente a revelação dos filhos de Deus; pois a criação foi sujeita ao que
é vão e ilusório, não por seu querer, mas por dependência daquele que a
sujeitou.Também a própria criação espera ser libertada da escravidão da
corrupção para a liberdade que é a glória dos filhos de Deus. Com efeito,
sabemos que toda a criação, até o presente, está gemendo como que em dores de
parto, e não somente ela, mas também nós, que temos as primícias do Espírito, gememos
em nosso íntimo, esperando a condição filial, a redenção de nosso corpo” (Rm
8,19-23).
A natureza toda,
portanto, assim como participou da escravidão do pecado e foi depredada, também
esteve e está destinada a participar da “liberdade dos filhos de Deus”. Essa
liberdade refere-se ao fato inimaginável, impensável, surpreendente, do Filho
de Deus que se faz natureza, que assume a natureza humana e vive ligado
intimamente à natureza, à terra, à água, aos montes, ao lago, às aves, aos
animais, às plantas, à videira, à oliveira, aos trigais, às flores, aos lírios
do campo, a toda a natureza, como meio ambiente do homem.
Ao assumir a natureza
humana, assume junto todo o meio ambiente, a morada por ele próprio preparada
para o homem. Como já vimos, a decadência do homem significou a decadência de
seu meio ambiente, pois a natureza toda está ordenada ao seu Criador, mediante
a criatura racional. Esta criatura, dotada de consciência, tem como fim exercer
a mediação de toda a natureza desprovida de razão, de consciência.
Portanto, a elevação
do homem, o enobrecimento do homem vai representar a elevação, o enobrecimento
do meio ambiente. Foi por isso que, desde os primeiros cristãos, se disse que
Deus se fez homem, a fim de fazer dos homens deuses. Agora, sim, a proposta do
tentador que insinuou Eva e Adão o afastamento de Deus e que os faria deuses,
se realizou não por obra e graça do próprio homem, mas por Jesus Cristo, o
Filho de Deus feito homem. Da mesma forma, poderíamos também dizer que Deus se
faz natureza a fim de fazer da natureza coisa divina. Ele não desdenha nada do
homem, como também da natureza e do meio ambiente. Ao contrário, ao resgatar o
homem, resgata com ele toda a criação.
Foi o que nos ensinou
São Paulo, na sua Carta aos Romanos, há pouco citada. Toda a criação “geme e
sofre como que dores de parto até o presente dia, para participar da gloriosa
liberdade dos filhos de Deus”. Portanto, o resgate do homem significa também o
resgate do meio ambiente e, nesse clima, não há lugar para a depredação, mas
para o resgate.
4. A Igreja Católica e o meio ambiente
Estou falando do
Catolicismo e do Meio Ambiente. Ora o Catolicismo é representado pela
instituição Igreja Católica. Cremos que Jesus Cristo confiou a Pedro e aos
Apóstolos e a seus sucessores o chamado “depósito da fé”, recordado na
introdução.
Como membros desta
instituição, cabe perguntar-nos não só sobre a opinião das autoridades
eclesiásticas, a respeito do meio ambiente, mas também sobre a opinião e a
prática dos membros dessa instituição.
Em primeiro lugar,
sobre a opinião das autoridades basta que citemos as palavras do Papa João
Paulo II proferidas na Zona Austral do Chile, em Punta Arenas, no dia 04 de
abril de 1987:
“Desde o Cone Sul do
Continente Americano e frente aos ilimitados espaços da Antártica, lanço um
chamado a todos os responsáveis de nosso planeta para proteger e conservar a
natureza criada por Deus: não permitamos que nosso mundo seja uma terra cada
vez mais degradada e degradante”[2].
Bento XVI,
igualmente, em maio de 2007, em seu discurso aos jovens, no Estádio do
Pacaembu, em São Paulo, chamou a atenção sobre a “devastação ambiental da
Amazônia e as ameaças à dignidade humana de seus povos” e pediu aos jovens “um
maior compromisso nos mais diversos espaços de ação”[3].
O Catecismo da
Igreja Católica (CIC), publicado em 1992, traz longo capítulo sobre a
criação. Depois de falar da criação, toda feita para o homem, cita um sermão de
São Pedro Crisólogo, do século V: “Quem é, pois, o ser que vai vir à existência
cercado de tal consideração? É um homem, grande e admirável figura viva, mais
precioso aos olhos de Deus do que a criação inteira: é o homem, é para ele que
existem o céu e a terra e o mar e a totalidade da criação, e é à salvação dele
que Deus atribuiu tanta importância, que nem sequer poupou seu Filho único em
seu favor” (CIC n. 358).
Portanto, por dois
motivos Deus tudo criou, para a manifestação de sua glória e para nossa
felicidade. Tendo todas as criaturas o mesmo Criador e estando todas elas
ordenadas à sua glória, existe uma
solidariedade entre todas elas (Cf. CIC, n. 344). Tal solidariedade
fundamenta a admiração e o respeito para com todo o nosso meio ambiente.
A estas alturas o
Catecismo cita um trecho da poesia de São Francisco de Assis, O Cântico do
irmão Sol:
Louvado sejas, meu
Senhor,
Com todas as tuas
criaturas,
Especialmente o
senhor irmão Sol,
Que clareia o dia
E com sua luz nos
alumia.
E ele é belo e
radiante
Com grande esplendor.
De ti, Altíssimo, é a
imagem.
Louvado sejas, meu
Senhor,
Pela irmã Lua e as
Estrelas,
Que no céu formastes
claras,
Preciosas e belas.
Louvado sejas, meu
Senhor,
Pelo irmão Vento,
Pelo ar, ou nublado,
Ou sereno, e todo o
tempo,
Pelo qual às tuas
criaturas dás sustento.
Louvado sejas, meu
Senhor,
Pela irmã Água.
Que é muito útil e
humilde
E preciosa e casta...
Louvado sejas, meu
Senhor,
Pelo irmão Fogo
Pelo qual iluminas a
noite
E ele é belo e
jucundo
E vigoroso e forte.
Louvado sejas, meu
Senhor,
Por nossa irmã, a mãe
Terra,
Que nos sustenta e
governa,
E produz frutos
diversos
E coloridas flores e
ervas.
Louvai e bendizei a
meu Senhor,
E dai-lhe graças,
E servi-o com grande
humildade.[4]
Não podemos estranhar que São Francisco de
Assis seja considerado o patrono da ecologia, do meio ambiente. Seus biógrafos
descrevem o quanto ele respeitava a natureza e o quanto sofria ao ver
maltratados animais ou vegetais[5].
Encontramos ainda
sobre o meio ambiente orientações da Igreja Católica de grande valor e muito
atuais. Um dos últimos pronunciamentos, encontra-se no Documento de
Aparecida (DA), texto conclusivo da V Conferência do Episcopado
Latino-Americano e do Caribe. As
cinco Conferências do Episcopado, realizadas desde 1955, foram de grande
importância para orientar a ação pastoral da Igreja, em nossas regiões, mas foram
também acolhidas e aprovadas por toda a Igreja.
Segundo esse
documento, o meio ambiente é tratado à luz de dois fatos de extraordinária
importância, isto é, a criação e a redenção.
Pela criação
valoriza-se a natureza toda como nosso ‘hábitat’, preparado para nós por Deus
mesmo, como vimos no início, já que “o Deus da vida confiou ao ser humano sua
obra criadora para que ‘a cultivasse e a guardasse’” (DA, n. 470).
Conseqüentemente, “o homem e a mulher são convocados a viver em comunhão com
ele, em comunhão entre si e com toda a criação” (Ibidem).
O Documento de
Aparecida fala da boa nova do destino universal dos bens e da ecologia:
“Junto com os povos originários da América,
louvamos ao Senhor que criou o universo como espaço para a vida e a convivência
de todos os seus filhos e filhas e no-lo deixou como sinal de sua bondade e de
sua beleza. A criação também é manifestação do amor providente de Deus; foi-nos
entregue para que cuidemos dela e a transformemos em fonte de vida digna para
todos. Ainda que hoje se tenha generalizado maior valorização da natureza,
percebemos claramente de quantas maneiras o homem ameaça e inclusive destrói
seu ‘hábitat’. “Nossa irmã, a mãe terra”, como diz São Francisco de Assis, é
nossa casa comum e o lugar da aliança de Deus com os seres humanos e com toda a
criação. Desatender as mútuas relações e o equilíbrio que o próprio Deus
estabeleceu entre as realidades criadas, é uma ofensa ao Criador, um atentado
contra a biodiversidade e, definitivamente, contra a vida. O discípulo missionário,
a quem Deus confiou a criação, deve contemplá-la, cuidar dela e utilizá-la,
respeitando sempre a ordem dada pelo Criador” (DA n.125)
Além da criação, a valorização extraordinária
do meio ambiente foi realizada pela redenção de Jesus Cristo. Junto com os
seres humanos toda a natureza foi “assumida”, isto é, foram elevados a um sumo,
sendo Cristo a cabeça dos humanos e por eles de toda a natureza. São Paulo nos
fala dessa relação ascendente para Cristo. Fala-nos do desígnio do Pai de
“reunir em Cristo todas as coisas, as que estão nos céus e as que estão na
terra” (Ef 1,10). Conseqüentemente, escreve: “Tudo vos pertence... tudo é
vosso... mas vós sois de Cristo, e Cristo é de Deus” (1Cor 3,21-23).
Nessa dupla
perspectiva, da criação e da redenção, o Catolicismo entende o respeito pelo
meio ambiente, visto que tudo participa da divindade de Cristo.
O Documento de
Aparecida, primeiro, constata que tal respeito não acontece na América Latina:
“A América Latina é o
Continente que possui uma das maiores biodiversidades do planeta e uma rica
sócio-diversidade, representada por seus povos e culturas. Há um grande acervo
de conhecimentos tradicionais sobre a utilização dos recursos naturais, assim
como sobre o valor medicinal de plantas e outros organismos vivos, muitos dos
quais formam a base de sua economia. Tais conhecimentos são atualmente objeto
de apropriação intelectual ilícita, sendo patenteados por indústrias
farmacêuticas e de biogenética, gerando vulnerabilidade dos agricultores e suas
famílias que dependem desses recursos para sua sobrevivência” (DA, n.83).
O Documento de
Aparecida denuncia também a desumana exploração das pessoas e da natureza:
“Nas decisões sobre
as riquezas da biodiversidade e da natureza, as populações tradicionais têm sido
praticamente excluídas. A natureza foi e continua sendo agredida. A terra foi
depredada. As águas estão sendo tratadas como se fossem mercadoria
negociável pelas empresas, além de serem
transformadas num bem disputado pelas grandes potências. Exemplo muito
importante nessa situação é a Amazônia” (DA, n.84).
Ao referir-se à
Amazônia, o Documento afirma que “a crescente agressão ao meio-ambiente pode
servir de pretexto para propostas de internacionalização da Amazônia, que só
servem aos interesses econômicos das corporações internacionais” (DA n. 86).
Constata também “o
retrocesso das geleiras em todo o mundo: o degelo do Ártico, cujo impacto já
está se vendo na flora e na fauna desse ecossistema; também o aquecimento
global se faz sentir no estrondoso crepitar dos blocos de gelo ártico que
reduzem a cobertura glacial do Continente e que regula o clima do mundo” (DA n.
87).
O Documento constata
também que “A riqueza natural da América Latina e do Caribe experimenta hoje
uma exploração irracional que vai deixando um rastro de dilapidação, inclusive
de morte por toda a nossa região. Em todo esse processo, tem enorme
responsabilidade o atual modelo econômico, que privilegia o desmedido afã pela
riqueza, acima da vida das pessoas e dos povos e do respeito racional pela
natureza. A devastação de nossas florestas e da biodiversidade mediante uma
atitude predatória e egoísta, envolve a responsabilidade moral dos que a
promovem, porque coloca em perigo a vida de milhões de pessoas, em especial do
hábitat dos camponeses e indígenas, que são expulsos para as terras
improdutivas e para as grandes cidades para viverem amontoadas nos cinturões de
miséria” (DA n. 473).
Em vista de tudo
isso, o Documento de Aparecida diz a todos que “é necessário dar especial
importância à mais grave destruição em curso da ecologia humana” (DA n. 472).
Em seguida, apresenta cinco ações práticas importantes para todos os membros da
Igreja, maximamente para a Igreja na América Latina e no Caribe:
a)
“Evangelizar
nossos povos para que descubram o dom da criação, sabendo contemplá-la e cuidar
dela como casa de todos os seres vivos e matriz da vida do planeta....,
educando-os para um estilo de vida de sobriedade e austeridade solidárias”.
b)
“Aprofundar a
presença pastoral nas populações mais frágeis e ameaçadas pelo desenvolvimento
predatório, e apoiá-las em seus esforços para conseguir eqüitativa distribuição
da terra, da água e dos espaços urbanos”.
c)
“Procurar um
modelo de desenvolvimento alternativo, integral e solidário, baseado em uma
ética que inclua a responsabilidade por uma autêntica ecologia natural e
humana, que se fundamenta no evangelho da justiça, da solidariedade e do
destino universal dos bens, e que supere a lógica utilitarista e
individualista, que não submete os poderes econômicos e tecnológicos a
critérios éticos”.
d)
“Empenhar nossos
esforços na implantação de políticas públicas e participações cidadãs que
garantam a proteção, conservação e restauração da natureza”.
e)
“Determinar
medidas de monitoramento e controle social sobre a aplicação dos padrões
ambientais internacionais nos países” (DA n. 474).
Nesse documento da Vª
Conferência do Episcopado da América Latina e do Caribe, temos, portanto,
preciosos elementos que revelam quanto a Igreja Católica está preocupada com o
meio ambiente, criado para ser hábitat, nossa própria morada. É, portanto, em
função do homem e de seu destino eterno que ela manifesta tanta preocupação,
pois se trata do hábitat por Deus mesmo criado para nós.
Conclusão
Felicito os
promotores destas “Reflexões” sobre “Religiões e Meio Ambiente”, pois, as
religiões, sobretudo as que se fundam na Bíblia, têm um grande apelo voltado ao
amor pela nossa casa comum onde vivemos. É a casa que Deus, nosso Pai, preparou
com muito carinho para nós. Devemos unir esforços a fim de preservá-la.
Não há dúvida, houve
um grande progresso na consciência ecológica de todos. Recordo que eu mesmo, na
minha infância, não conseguia entender as restrições das primeiras leis de
proteção aos animais e às plantas. Perguntava-me por que tais restrições, se
tudo me parecia tão abundante.
Falei do carinho com
que Deus preparou nossa habitação. A sensibilidade pela natureza está muito
relacionada com a experiência de um grande amor.
Penso que o amor é
capaz de enriquecer nosso sentir pela natureza, como aconteceu com São
Francisco de Assis e muitíssimos outros.
Falando disso,
concluo fazendo uma referência sobre o seguinte: um grande amor faz sentir-nos
em comunhão com a natureza. Pode até ser razoavelmente plausível o que muitos
acreditam que podemos ter experiências chamadas holísticas, oceânicas, de
trans-consciência, uma espécie de sentir-se identificado com todo o cosmos.
Basta recordar as obras escritas de Fridjof Capra.
Acontece em algumas religiões, como na Católica, uma
espécie de identificação no amor com toda a criação. Poderia citar muitos
exemplos. Permito-me narrar apenas um: Vive ainda uma mulher russa, Tatiana
Guritcheva, professora de filosofia marxista. Insatisfeita com sua filosofia e
muito inquieta por encontrar um sentido para a vida, buscou todo tipo de
experiências, sexo e drogas... Nessa busca terminou aderindo à ioga. Decorou
vários mantras, entre eles até o Pai-nosso. No livro por ela escrito e
intitulado, Falar de Deus é perigoso, ela narra:
“Eis que um dia
(tinha vinte e seis anos, então), eu caminhava por um campo, dizendo as
palavras do Pai-nosso. Depois de tê-lo repetido umas seis vezes, sem ter a
menor fé na existência de um ‘Pai celeste’, recebi subitamente a resposta. A
coisa mais inesperada, mais inimaginável me aconteceu. Tornou-se claro para mim
que Ele existia. Não o deus anônimo dos iogues, mas o Pai dos Céus, cheio de
amor. Ele me amava e amava todas as coisas que me estavam ao redor. Tudo ficou
tão claro para mim, como se estivéssemos no primeiro dia da Criação. A pobre
paisagem em torno se iluminou de uma alegria incomum, cada planta, cada folha
parecia fremir de júbilo. Dir-se-ia que o mundo inteiro acabava de sair de suas
mãos extravasantes de amor. Naquele momento, eu nasci de novo”.
Depois dessa virada
em sua vida, ela foi expulsa da Rússia e, após viajar pelo mundo dando
palestras, fundou um escritório na Alemanha, a fim de angariar fundos para as
crianças abandonadas, sobretudo as da África.
Respeitemos,
valorizemos a casa comum que Deus nos preparou com carinho de Pai!
[1]
Diálogus, 8; cf Cola, Silvano, Operários da Primeira Hora, Cidade Nova Editora,
tradução Pepe, Enrico, 2ª ed. 1987, 14.
[2] Citado
no Documento de Aparecida, nº 87.
[3] Ib nº
85.
[4] (Cat.
344; cf São Francisco de Assis, escritos e biografias, Vozes 1996, p.70s).
[5] Cf Inácio Larrañaga, O Irmão de Assis, Paulinas,
1980, p 102s.
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