Taoismo/Fundamentos
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"A presença de um verdadeiro chefe de Estado
É sentida pelo povo como ausência"
Lao-Tsé[1]
O taoismo se baseia em alguns conceitos fundamentais:
- contemplação da natureza
Para o taoismo, a natureza apresenta um equilíbrio inato. Para nos harmonizarmos, basta, portanto, contemplarmos a natureza e tomá-la como referência em nossas atitudes e pensamentos. Tal pensamento apresenta semelhança com a escola filosófica do estoicismo, da Grécia antiga. Segundo essa escola, a natureza, no seu todo, é harmoniosa, e cabe, ao homem, procurar imitá-la para, assim, conquistar a harmonia e a felicidade.[3] Outra analogia possível é com o estilo art nouveau de arquitetura, popular na Europa entre 1895 e 1906 e que buscava inspiração nas formas da natureza.[4]
- não agir
Um princípio muito importante do taoismo é o wu wei, termo da língua chinesa que significa "não agir". Segundo esse princípio, é através do não agir que encontramos a paz e o equilíbrio.[5] O taoismo parte do princípio de que a natureza é, intrinsecamente, perfeita e harmoniosa: nesse sentido, qualquer ação nossa, mesmo que seja bem-intencionada, tende a perturbar essa harmonia.
Logo, o melhor que temos a fazer é procurar minimizar ao máximo nossas ações no universo, limitando-as ao mínimo indispensável. Assim fazendo, ou melhor, "não fazendo", seremos mais felizes e o universo, mais belo e harmonioso. É um conceito que encontra ressonância no pensamento ecológico atual, que procura minimizar o impacto das ações do homem no meio ambiente. E, apesar de parecer ser, aos olhos ocidentais, uma doutrina exótica oriental, no fundo não passa de uma outra forma de enunciar a velha expressão italiana dolce far niente ("doce fazer nada").[6]
A natureza, o modelo de perfeição do taoismo, também é regida pela não ação: nela, não existem ações desnecessárias. Todos os seres vivos somente agem por um bom motivo. Caso contrário, eles estariam desperdiçando energia vital, o que não seria positivo do ponto de vista da seleção natural.
A doutrina taoista da não ação também encontra paralelo na filosofia islâmica: no islamismo, considera-se proibido fazer representações de homens ou animais, pois isso equivaleria a querer se igualar a Deus na capacidade de criar. Em outras palavras, seria como macular a obra divina (o universo), que é perfeita, com uma obra imperfeita (as representações humanas de homens ou animais). Os artistas islâmicos, em face dessa proibição, se esmeraram em decorar suas obras com figuras abstratas e trechos de seu livro sagrado, o Alcorão.[7]
Atualmente, o sociólogo italiano Domenico de Masi advoga uma doutrina semelhante à não ação taoista: é a doutrina do "ócio criativo". Segundo essa doutrina, é nos momentos de ócio que o homem se torna mais criativo. Por esse motivo, segundo Domenico, a sociedade deveria tornar mais frequentes esses momentos de ócio.[8]
- suavidade
O taoismo defende que a suavidade, o relaxamento e a flexibilidade são mais eficientes e harmoniosos que a força e a rigidez. Por exemplo: as gotas de água, caindo constantemente sobre uma rocha, conseguirão, um dia, perfurá-la, apesar de a água ser muito mais mole que a pedra. Do mesmo modo, com a idade avançada, os seres humanos costumam perder os dentes, que são duros, mas retêm as gengivas, que são moles: isso também mostra que o fraco e mole são superiores ao duro e rígido. Segundo o taoismo, devemos ser flexíveis em nossas atitudes e opiniões, como a água, que se adapta ao ambiente em que está (um aquário, um riacho, o oceano etc.)[9]
Uma aplicação desse princípio são os movimentos lentos e relaxados da arte marcial chinesa do tai chi chuan. No tai chi chuan, o corpo deve sempre se manter relaxado, de modo a não obstruir o fluxo de energia vital que circula naturalmente pelo corpo. Qualquer tensão muscular tende a obstruir esse fluxo, gerando doenças físicas e psíquicas.[10]
- humildade
Lao-tsé aconselhou as pessoas a procurar imitar a água, que sempre flui para os locais mais baixos. Do mesmo modo, as pessoas deveriam procurar se colocar nas posições mais baixas da sociedade,[11] como forma de evitar disputas por cargos e privilégios. A nível social, isso traria mais paz à sociedade. A nível pessoal, isso traria tranquilidade.
- generosidade
Segundo Lao-tsé, devemos imitar a natureza e sermos generosos, dando sem esperar receber nada em troca. Pois a natureza nos oferece abundantes recursos naturais, sem nada nos exigir em troca.[12] A nível pessoal, este comportamento nos trará amigos. A nível coletivo, evitará disputas por riquezas. O sábio taoista é altruísta: como diz Lao-Tsé no Tao Te Ching, "riqueza é, para o sábio, o que ele faz pelos outros".[13][14]
- não violência
Lao-tsé aconselhou os governantes a evitar ao máximo a violência, recorrendo a ela apenas em último caso. E, em caso de vitória, não a comemorar com alegria, caso ela tiver sido obtida através da violência.[15][16]
- simplicidade
A sociedade costuma valorizar os mais inteligentes e cultos. Porém, segundo o taoismo, deveríamos, ao contrário, procurar ser cada vez mais simples, pois o acúmulo de conhecimentos tende, na verdade, a afastar o homem de seu estado original de perfeição e pureza.[17]É um conceito semelhante ao mito do "bom selvagem", que se popularizou na filosofia europeia entre os séculos 16 e 18. O mito do bom selvagem dizia que o homem é naturalmente bom, mas que a civilização o corrompe.[18] Outro exemplo da simplicidade buscada pelos taoistas pode ser encontrado no famoso filme estadunidense de 1941 Citizen Kane, do diretor Orson Welles. No filme, o magnata que dá título ao filme morre infeliz, lembrando-se do único momento em que foi realmente feliz: na sua infância, quando brincava com um trenó batizado de Rosebud. Ou seja: no filme, a felicidade não está no poder, dinheiro e mulheres conseguidos pelo protagonista ao longo de sua vida, mas na simplicidade de sua infância. Um conceito que é semelhante à busca taoista pela simplicidade.[19]
- evitar o excesso de normas e proibições
Segundo o taoismo, o excesso de normas e proibições demonstra a decadência moral de uma sociedade, pois o homem virtuoso faz o bem de uma forma natural, espontânea, sem a necessidade da existência de regras. Se uma sociedade tem de criar muitas regras, é porque ela está corrompida. Segundo a doutrina taoista, o excesso de regras é inútil: ela apenas estimula os criminosos a inventarem novas formas de burlar as leis. O governante ideal deveria governar através de seu exemplo pessoal de humildade e de não interferência, e não impondo normas aos cidadãos. O excesso de normas aprisiona o homem, dificultando o pleno desabrochar de suas potencialidades e a livre expressão de sua natureza.
Devemos, ao invés disso, ser fiéis a nossa natureza interior, procurando ser espontâneos. Disso, resultará saúde e felicidade. É interessante notar que, neste ponto, o taoismo é uma exceção no mundo das religiões, pois estas costumam impor normas aos indivíduos. Embora, sob certo ponto de vista, esta busca taoista pela espontaneidade possa ser encarada, paradoxalmente, como uma norma! (O humor e a ironia também são características marcantes dos textos clássicos taoistas!)[20]
Tal ênfase em se evitar normas encontra paralelo na história da economia no pensamento liberal do filósofo escocês Adam Smith (1723-1790). Segundo Smith, a melhor forma de atuação de um governo é, simplesmente, "não agir", deixando que o mercado regule naturalmente a economia, com o menor nível possível de interferência do governo. Dessa forma, seria maximizado o bem-estar da sociedade.[21]
O escritor inglês Alan Watts apontou a semelhança entre o taoismo e o anarquismo do russo Kropotkin: segundo Watts, ambas as doutrinas confiam na capacidade de o próprio indivíduo decidir o que é melhor para sua vida, em vez de depender da obediência a regras impostas de cima para baixo. Com isso, não seriam atingidas apenas a harmonia e felicidade individuais, mas, também, a harmonia e a felicidade da sociedade como um todo, pois a sociedade nada mais é do que a soma dos indivíduos.[22]
Referências
- ↑ LAO-TSÉ. Tao Te Ching: o livro que revela Deus. São Paulo. Martin Claret. 2003. p. 58.
- ↑ FERREIRA, A. B. H. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Segunda edição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. p.881
- ↑ FERRY, L. Aprender a viver. Tradução de Vera Lúcia dos Reis. Rio de Janeiro. Objetiva. 2010. p. 31-42.
- ↑ STRICKLAND, C. Arquitetura comentada. Tradução de Fidelity Translations. Rio de Janeiro. Ediouro. 2003. p. 167.
- ↑ WILKINSON, P. O livro ilustrado das religiões: o fascinante universo das crenças e doutrinas que acompanham o homem através dos tempos. Tradução de Margarida e Flávio Quintiliano. São Paulo. Publifolha. 2001. p. 71.
- ↑ Priberam dicionário. Disponível em http://www.priberam.pt/dlpo/dolce%20far%20niente. Acesso em 5 de dezembro de 2013.
- ↑ STEWART, D. Biblioteca de história universal Life: antigo Islã. Tradução de Iracema Castello Branco. Rio de Janeiro. Livraria José Olympio Editora. 1979. p. 111,150,153.
- ↑ e.educacional. Disponível em http://www.educacional.com.br/entrevistas/entrevista0019.asp. Acesso em 26 de dezembro de 2013.
- ↑ TSAI, C. Tao em quadrinhos. Tradução de Maria Clara de B. W. Fernandes. Rio de Janeiro. Ediouro. 1997. pp. 16,73,94.
- ↑ WU, J. Tai Chi Chuan: a alquimia do movimento. 5ª edição. Rio de Janeiro. Mauad. 2010. p. 28,29.
- ↑ TSAI, C. Tao em quadrinhos. Tradução de Maria Clara de B. W. Fernandes. Rio de Janeiro. Ediouro. 1997. pp. 39,40.
- ↑ TSAI, C. Tao em quadrinhos. Tradução de Maria Clara de B. W. Fernandes. Rio de Janeiro. Ediouro. 1997. p. 40.
- ↑ TSAI, C. Tao em quadrinhos. Tradução de Maria Clara de B. W. Fernandes. Rio de Janeiro. Ediouro. 1997. p. 96,97.
- ↑ LAO-TSÉ. Tao te ching: o livro que revela Deus. Tradução de Huberto Rohden. São Paulo. Martin Claret. 2003. p. 185.
- ↑ LAO-TSÉ. Tao Te Ching. São Paulo: Martin Claret, 2003. p.87
- ↑ TSAI, C. Tao em Quadrinhos. Tradução de Maria Clara de B. W. Fernandes. Rio de Janeiro. Ediouro. 1997. pp. 60-61
- ↑ TSAI, C. Tao em quadrinhos. Tradução de Maria Clara de B. W. Fernandes. Rio de Janeiro. Ediouro. 1997. pp. 15,17,18,78.
- ↑ BUENO, E. Brasil: uma história. 2ª edição. São Paulo. Ática. 2003. p. 24.
- ↑ Mídia e poder: cidadão Kane. Disponível em http://cidkane.blogspot.com.br/2008/11/reflexes-sobre-o-filme-cidado-kane.html. Acesso em 4 de março de 2014.
- ↑ TSAI, C. Tao em quadrinhos. Tradução de Maria Clara de B. W. Fernandes. Rio de Janeiro. Ediouro. 1997. pp. 85,85.
- ↑ SAMUELSON, P. A. e NORDHAUS, W. D. Economia. Tradução de Elsa Nobre Fontainha e Jorge Pires Gomes. 14ª edição. Alfragide. McGraw-Hill de Portugal. 1993. p. 436-437.
- ↑ WATTS, A. Tao: o curso do rio. Tradução de Terezinha Santos. São Paulo. Pensamento. p. 74.
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