sexta-feira, 9 de outubro de 2015

Pai e filho que venceram o alcoolismo criam movimento para recuperar dependentes


6.out.2015 - O médico Paulo Leme, 74, e seu filho, Leme Filho, 43, enfrentaram o alcoolismo

Em 1989, o médico Paulo de Abreu Leme, 75, se deu conta de que era um alcoólatra. Anos mais tarde, seu filho, o advogado Paulo de Abreu Leme Filho, 44, foi diagnosticado com o mesmo problema. O alcoolismo que atingiu dois membros da família Leme confirma uma estatística: cerca de 3% dos brasileiros acima de 15 anos de idade sofrem com a dependência do álcool, segundo levantamento da Organização Mundial da Saúde (OMS), realizado em 2014.

Após intensos tratamentos clínicos e psicológicos, ambos estão recuperados, e a experiência serviu como base para a criação do movimento "Vale a Pena", uma entidade sem fins lucrativos que ajuda na recuperação de viciados em drogas lícitas e ilícitas.
"Comecei a beber por volta dos 16 anos de idade, na fase escolar. Isso se dava em ambientes tipicamente juvenis, como matar uma aula para jogar baralho na companhia de amigos ou em festas. É difícil saber exatamente quando perdi o controle, mas creio que isso deva ter acontecido na faculdade, quando deixei os estudos e o trabalho que tinha, com a finalidade de beber mais", conta Leme Filho.
O médico Paulo Leme teve um início parecido: "Foi de forma esporádica, na faculdade de medicina, em festas ou encontros de amigos. Consegui, porém, desenvolver uma vida profissional bastante satisfatória e nunca me enxerguei como alguém que tivesse problemas com álcool".


Para Paulo Leme, o alerta chegou em 1989 e partiu da empresa multinacional em que trabalhava. "A empresa apontou o problema, me sugeriu uma internação e me desligou da companhia. Foi a partir daí que busquei informações a respeito da doença do alcoolismo e fiz um tratamento".
Desde 2012, o Tribunal Superior do Trabalho considera o alcoolismo uma doença crônica, e o trabalhador dependente de álcool só poderá ser demitido por justa causa quando recusar tratamento médico. Mas, o funcionário que não é alcoólatra e encontra-se em estado de embriaguez, ou seja, vai trabalhar bêbado, pode ser demitido por justa causa.

Movimento

Por conta da superação, pai e filho lançaram em março deste ano o livro "A Doença do Alcoolismo", no qual relatam suas histórias sobre o vício. O sucesso da publicação acabou rendendo a ideia do "Movimento Vale a Pena", uma vez que eles foram procurados por pessoas que apontavam a falta de acesso às informações de quem vive o mesmo drama que eles.





"O objetivo do movimento é justamente levar informação e citar possibilidades de recuperação. O importante é informar e debater o assunto publicamente. E não há restrições, por exemplo, de pessoas que tenham problemas com a dependência das drogas consideradas ilegais", relata Leme Filho.
Na internet, o movimento conta com uma página com informações que podem ajudar quem passa pelo problema do alcoolismo. Fora do mundo virtual, o projeto visita escolas, associações e condomínios residenciais para debater o vício.

Nesta quinta-feira (8),(ontem), o movimento realizará um simpósio na sede da faculdade Isitec, em São Paulo. Nesta reunião, estarão presentes ex-viciados, especialistas de saúde e movimentos que ajudam dependentes químicos. "Estar junto com essas pessoas nos deixa imensamente felizes. É um aspecto positivo do nosso trabalho", afirmam.


Entretanto, Paulo Leme e seu filho gostam de frisar que não pregam uma "guerra santa" contra o álcool. De acordo com pesquisas apontadas por eles sobre o assunto, a maior parte da população pode beber sem trazer prejuízos a si ou a suas famílias, mas, 10% da população pode desenvolver a doença do alcoolismo.

Tratamento

A psicóloga clínica Ana Laura Parlato, pós-graduada e especializada em dependência química, explica que não é fácil traçar um limite entre o uso recreativo do álcool e a dependência: "É necessária uma série de diagnósticos clínicos, além de uma análise funcional da vida do usuário, que mostre as consequências do uso do álcool na saúde, no trabalho, nos relacionamentos e no comportamento do indivíduo".

A especialista alerta também que a família pode ajudar a perceber que algo está errado, e este foi exatamente o caso de Paulo Filho. "Quando meus pais me ofereceram apoio para que eu me tratasse, me dei conta da gravidade da situação", lembra .

Para vencer a doença, Paulo Leme, o pai, precisou ser internado. "É muito difícil porque sempre subsiste uma 'esperança' de que, por alguma razão, seja possível voltar a beber como antes. Isso tudo sem falar que a expressão 'alcoólatra' ainda carrega, para algumas pessoas, um estigma de ordem moral, no qual o dependente é visto como alguém sem força de vontade", avalia.
Já Leme Filho não precisou do mesmo recurso e, basicamente, se recuperou a partir da frequência diária durante três anos em reuniões do AA (Alcoólicos Anônimos), nas quais os dependentes relatam suas experiências, visando ajudar uns aos outros.

Além disso, ambos contavam com o apoio mútuo. "Devo minha recuperação, minha vida, ao meu pai. Quando iniciei meu tratamento, sabia, com absoluta certeza, que existia uma solução pelo simples fato de que tinha visto isso acontecer, de verdade, na vida dele. Há uma grande diferença entre saber que uma coisa existe e ver essa mesma coisa acontecer concretamente", afirma Leme Filho.
O médico Paulo Leme também credita o sucesso de sua recuperação aos filhos: "Sempre foram importantes para minha recuperação, e o bem deles também me incentiva e me incentivou".
Os dois contam que a adaptação não é nenhum "mar de rosas" e que, durante as primeiras semanas, manter-se em abstinência é complicado. "A percepção da própria realidade vai sendo retomada, e a aceitação se torna mais fácil. Essa percepção, porém, precisa ser permanentemente cultivada, uma vez que, se por qualquer razão, o doente ingerir álcool outra vez, a doença será retomada no exato estágio em que se encontrava".

Como distinguir o uso recreativo do vício?

"Quando uma pessoa está dependente ela tende a se isolar, a minimizar as consequências negativas, pode mentir ou omitir fatos sempre visando o consumo. A família precisa observar principalmente as mudanças de humor, rotina e comportamentos, ou seja, a irritabilidade, a instabilidade emocional, as alterações na rotina de sono, alimentação e a queda no rendimento escolar ou laboral", explica Ana Parlato, psicóloga clínica pós-graduada e especializada em dependência química.

A especialista avalia também que atualmente o alcoolismo não é mais tratado como um problema filosófico ou moral: "A dependência química é uma doença, e o portador precisa ser tratado, sem julgamento, sendo acolhido e aceito de maneira incondicional".
 

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