Sem água há mais de uma semana, índios decidiram interromper ferrovia em protesto
om o corpo pintado para a guerra, tinta preta no rosto e olhos vermelhos de noites mal dormidas, Geovani Krenak, líder da tribo indígena Krenak, mira a imensidão de água turva e marrom.
"Com a gente não tem isso de nós, o rio, as árvores, os bichos. Somos um só, a gente e a natureza, um só", diz. Ele respira fundo, e continua: "Morre rio, morremos todos".
Parte dos 800 km de extensão do rio Doce, contaminado pela lama espessa que escoa há 10 dias de duas barragens de rejeitos da mineradora Samarco, em MG, atravessa a reserva da tribo. Tida como sagrada há gerações, toda a água utilizada por 350 índios para consumo, banho e limpeza vinha dali. Não mais.
Sem água há mais de uma semana, sujos e com sede, eles decidiram interromper em protesto a Estrada de Ferro Vitória-Minas, por onde a Vale, controladora da Samarco e da ferrovia, transporta seus minérios para exportação.
"Só saímos quando tiverem a dignidade de conversar com a gente. Destruíram nossa vida, arrasaram nossa cultura, e nos ignoram. Não aceitamos”, anuncia o índio Aiá Krenak à BBC Brasil.
Procurada, a Vale informa que "continua, com apoio da Funai, as tentativas de negociação com o povo Indígena Krenak para liberação da ferrovia".
"Cabe ressaltar que a Vale, como acionista da Samarco juntamente com a BHP Billiton, tem atuado ativamente nas ações para atendimento às famílias afetadas pelo acidente do dia 5 de novembro e reitera seu compromisso em se relacionar com o Povo Krenak de modo transparente e participativo, mantendo uma relação construtiva, respeitando suas características próprias e a legislação vigente", disse a empresa por meio de nota.
A empresa afirma que a interdição está impedindo o transporte de água para as comunidades da região do Rio Doce. "Atualmente, cerca de 360 mil litros de água, sendo 60 mil litros de água mineral e 300 mil litros de água potável, provenientes de Vitória (ES), estão nos trens aguardando a liberação da ferrovia para distribuição", diz a Vale no comunicado.
"A empresa repudia quaisquer manifestações violentas que coloquem em risco seus empregados, passageiros, suas operações e que firam o Estado Democrático de Direito e ratifica que obstruir ferrovia é crime."
Parte dos 800 km do rio Doce, contaminado pela lama espessa, atravessa a reserva da tribo
41 graus, sem água
Sentados ao longo dos trilhos enferrujados, sob o sol de 41 graus, os índios cantam uma música de compasso lento, marcado pelas batidas de cajados de madeira no chão, tudo no idioma krenak.
De cocar amarelo, apoiado por um tronco de madeira, o pajé, homem mais velho das redondezas, chora. Ernani Krenak, 105 anos de idade, se aproxima e traduz a canção para a reportagem da BBC Brasil.
"O rio é lindo. Obrigado, Deus, pelo rio que nos alimenta e banha. O rio é lindo. Obrigado, Deus, pelo nosso rio, pelo rio de todos."
Sua irmã pede a palavra. Dejanira Krenak, de 65 anos, quer lembrar que o sofrimento não é só dos índios. "Não é 'só nós', os brancos que moram também na beira do rio precisam muito dessa água, eles convivem com essa água, muitos pescadores tratam a família com os peixes, diz.
Atrás dos dois, uma índia molha os rostos suados das duas filhas pequenas com uma cuia mal cheia de água de um galão doado por moradores de cidades vizinhas, como Conselheiro Pena e Resplendor.
Segundo os índios, crianças e idosos têm prioridade na distribuição da pouca água limpa estocada.
A família está acampada sob lonas pretas na margem da ferrovia, onde também se espalham barracas de camping e colchões ao relento. Ali, homens e mulheres fumam longos cachimbos, enquanto acendem pequenas fogueiras para aquecer o jantar coletivo
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